30.9.03

Hino à Chuva

A terra humedece. A água escorre. Os terrenos calcinados inclinam-se para o lado das correntes. Depois de dois meses de sede, a humidade ou o alimento necessário para as plantas sofridas. As florestas calcinadas podem renascer.

29.9.03

Elia Kazan

A morte do realizador de cinema Elia Kazan, ocorrida ontem, em Nova Iorque, leva-nos à maravilha de alguns dos mais belos filmes do século XX. Quem não lembrará "Viva Zapata", "A Leste do Paraíso", "Há Lodo no Cais", América, América", "Esplendor na Relva" ou "Gata em Telhado de Zinco Quente" ? Nem tudo é preto, nem tudo é branco. À beleza dos filmes, opomos uma mancha que tocou a dignidade deste homem, agora falecido, com 94 anos: nos anos negros do mccartismo e do "seu" vergonhoso "Comité de Actividades Antiamericanas" (anos 53-54,sobretudo), mais conhecido por Comité de Caça às Bruxas, Kazan denunciou 8 dos seus companheiros como fazendo parte do Partido Comunista Americano. Esta mancha permaneceu. Kazan escreveu na sua autobiografia ( 1988): "essa coisa horrível, imoral, foi por vontade própria". Pelo menos, reconheceu o seu papel de delator. Mesmo os grandes homens, às vezes, cometem erros e crimes imperdoáveis. Esta é a condição humana.

Cinzas

Depois do fim-de-semana, o regresso a esta casa de escrita rarefeita. A manhã está cinzenta, leve, sem chuva. Ali ao lado, o mar agita-se. Recupero alguns ramos de memória destes três últimos dias, feitos de coisas breves como a leitura dos jornais, e de duas pedras pesadas: a leitura de "Koba, o Terrível", de Martin Amis,e o Congresso do CDS/PP. O livro leva-nos à vergonha terrível do estalinismo, aos crimes hediondos (fome, tortura, fuzilamentos, Terror ) justificados em nome de qualquer coisa futurível. Morreram trinta ou quarenta milhões de pessoas, em condições de tal brutalidade que nos perturba, ainda, a respiração. "Koba" é Estaline, um nome manchado de terror. Ser de esquerda, hoje, pressupõe estar contra todos os "gulags", contra todos os campos de morte. Claro que há algumas diferenças de superfície mas, nos objectivos atingidos, Hitler e Estaline podem comparar-se: dois monstros.
A segunda pedra pesada arrasta-nos a um Congresso risível, onde um partido se ajoelha para se poder manter no poder, metendo os pés pelas mãos, agredindo, mentindo, trocando frases vazias sobre a Europa, como referiu o Pacheco Pereira. Chama-se o que Portugal tem de pior: o ódio à descolonização, à imigração, ao espaço europeu; esquece-se o que é necessário melhorar: a educação, a saúde, a segurança social, a protecção do ambiente; culpa-se a "esquerda" por todos os erros do actual governo e o atraso português deve-se à "luta de classes" que os trabalhadores levam para as empresas! Trabalhinho é que é preciso. E mentira, muita mentira. Estes dinossauros excelentíssimos, parentes de um nacionalismo serôdio, envergonham um povo que quer viver melhor para pensar melhor.

25.9.03

Sérgio Ortega e Pablo Neruda

Para acalmar de dois "posts" que me cairam dos olhos, leio a "CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA", de Jorge de Sena (1919 - 1978 ) na "Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa", de Eugénio de Andrade. Recordo o poema na voz de Mário Viegas e, por associação de ideias, regresso a Pablo Neruda e ao 30.º aniversário da sua morte, há dois dias. Em 23 de Setembro de 1973, doze dias após o golpe militar no Chile, foi-se o autor de "Canto Geral" (Campo das Letras, 1998) ou de "Os Versos do Capitão" (Campo das Letras, 1996), em versões do poeta Albano Martins. Esta memória de Neruda leva-nos a Sérgio Ortega, autor das canções "VENCEREMOS" e "EL PUEBLO UNIDO JAMAS SERA VENCIDO", falecido, uma semana antes deste 30.º aniversário, em 16 de Setembro de 2003, em Paris. Após trinta anos de ausência, as suas cinzas regressarão ao Chile. Será, simbolicamente, o seu regresso definitivo do exílio. Para Pablo Neruda e Sérgio Ortega, lembrando todos os "sacrificados, torturados, espancados" ou os "estripados, esfolados, queimados, gaseados", de que fala o poema de Jorge de Sena, um sopro de Portugal ao Chile!

Israel

Será Israel um Estado de Direito democrático ? Será Israel um Estado terrorista ? Quando se assassina impunemente, quando se quer expulsar ou, mesmo, matar o líder palestiniano Arafat, o que estamos a fazer ? A pena de morte envergonha a Humanidade, seja em que situação for. Ao terrorismo palestiniano, Israel responde com o terrorismo selectivo:assassina, arrasa habitações, constrói muros de vergonha. É triste ver que a História não dá lições e que Israel também está do lado dos assassinos.

Prevenção

O Durão Barroso acaba de propor na ONU a criação de uma Comissão de Prevenção de Conflitos. Ficamos espantadíssimos com a coragem! Não sei se os outros países se rirão, se chorarão, se ficarão aparvalhados com tal proposta. É que, no que toca à Prevenção, Portugal é um espanto de ausências ! Por que não há prevenção de sismos, de incêndios, de quedas de pontes, de cheias, de acidentes nas estradas, de gravidezes adolescentes, de toxicodependências, de analfabetismo e ileteracia, de mil coisas que fazem Portugal escorregar para longe ? Por que não aprendemos com os povos que sabem prever e prevenir? Por que se propõe lá fora o que não sabemos fazer em casa? Ou, se sabemos, por que não fazemos ? Bem prega Frei Tomás...

24.9.03

Vertigem

Chamar à opinião do Paulo Portas (PP) sobre a emigração uma cópia da "vulgata do Le Pen", como diz o Pacheco Pereira, parece acertado. Dizer que esse PP foi assombrado por uma "vertigem populista, perigosa e lamentável", parece também uma opinião acertada. Mas andamos, ainda, com paninhos quentes. O que esse senhor disse sobre a relação emigrantes-desemprego foi um nojo, umas frases fascistas e rascistas que envergonham um Povo. O PP "cheira mal da boca", muito mais do que o Dantas do Almada Negreiros. O seu mau hálito passeava há dias na ilha da Madeira. Tanto quanto se sabe, ainda não podemos visitar a ilha, por estar de quarentena. Até quando ? Até quando continuaremos a suportar a imbecilidade de cérebros reptilianos ?

Livros

Rodeado por esses animais breves que caminham, atraem-me alguns números, como os onze mil títulos editados em Portugal, em 2002. Parecem muitos ? Os manuais escolares entram nessa estatística ? Quantos são editados na Catalunha e em língua catalã ? Com metade dos habitantes editam o dobro ! Mas há mais perguntas a fazer: por que será que dos 120 títulos anunciados para esta reentrada, só 43 são de autores portugueses ? Vacila-se. A ileteracia campeia. O país dorme à sombra das livrarias que morrem ( há menos de cem livreiros inscritos neste glorioso ano de 2003). Tudo parece simples em Portugal. Lemos e não nos toca a bomba de espanto necessária a um país que pense. Que se pense.

23.9.03

Equinócio

Paro aqui, nesta margem do mar, para poder olhar as óndas e sentir a proximidade das marés vivas, altas, desfocadas, neste equinócio de Setembro. Saúdo as algas que vogam e morrem na praia, arrancadas ao berço marinho da tranquilidade acabada. Toco-as e respiro o sal, esta maresia líquida outonal.

21.9.03

O Poema do Dia (5)

Para alguns, o poema de Alexandre O'Neill ( 1924 - 1986 ) "UM ADEUS PORTUGUÊS" é o melhor poema da nossa literatura, no século XX. Para mim, é com certeza um dos maiores poemas de amor e, quantas vezes, nos momentos translúcidos da memória, dou comigo a soletrar os versos finais do poema: "(...) como um adolescente / tropeço de ternura / por ti." Este é, com certeza, um rio onde vale a pena mergulhar e reconstruir o amor. A aura biográfica leva-nos a uma paixão: ali, a França; aqui, a prisão. Em tempos de "apagada e vil tristeza", vale a pena escostar estrofes ao peito e saudar, com palavras e música, a vida leve. O amor purifica o ar.

UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio
puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

*

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.





19.9.03

Dicionário Canalha

Encontrei há dias um amigo meu atarefadíssimo na elaboração de um Dicionário Canalha. Fiquei espantadíssimo com a ideia que lhe tinha surgido há dois meses, quando o portuense Miguel Veiga, fundador do PSD, qualificou de "quase canalha" o comportamento de Paulo Portas para com a Cruz Vermelha. Dizia o meu amigo que "quase canalha" é pior que "canalha" e ficou a pensar na expressão, quando leu no jornal o Mário Soares a apelidar o mesmo PP de " cobarde" e, mais tarde de "tumor" a extirpar. Partindo destas ideia, iniciou o DICIONÁRIO CANALHA. Já escreveu trinta páginas ! Li-as com agrado e recolhi alguns adjectivos ou expressões que passo a citar: acachapado, abjecto, biltre, javardo, pulha, calhau com dois olhos, burro como um penedo, teleósteo, peixe-sapo, rascasso, pimpim, rainúnculo, mazorro, vespa, himenóptero, jeropiga ou vinho abafado, pulha, pulhastra, camelo, cara de tamboril, etc. Fiquei atordoado com a quantidade de palavras para a caracterização de um sujeito ignóbil. Claro que aprendi muito e enriqueci o meu vocabulário. Desconhecia as palavras mazorro ou acachapado mas conhecia as outras, mesmo rascasso. O Paulo Portas, afinal, serve para o enriquecimento vocabular e, mais ainda, para o nascimento de um Dicionário que o meu amigo diz poder chegar às duzentas páginas. Oxalá o rascasso não se ofenda, nem o himenóptero ou o cão, este simples animal que está na etimologia da palavra "canalha". Tudo isto, graças ao Paulo Portas !

17.9.03

Gralhas

Releio o texto sobre a Tapada de Mafra e coro perante as gralhas: em vez de tirocinante sai-me um "tirocanante" e, em vez de devastada e devastados, leio "desvastada" e "desvastados". A minha costela nortenha ter-me-á levado para o prefixo "des", tão lindo como este destecer o texto, mas tão longe das devastações que nos assolam. Não vou esquecer e prometo que vou reler sempre antes de publicar !

A Tapada de Mafra

Tenho centenas de horas da minha vida respiradas na Tapada de Mafra, quer como cadete na Escola Prática de Infantaria, quer como tirocanante no Centro Militar de Educação Física, Equitação e Desportos, o famigerado CMEFED. Corri, dormi, marchei, passeei, bebi água fresca ( ah, as águas férreas ! ) e li e cantei e chorei naquele espaço que parecia preso ao coração do mundo, ao coração nas trevas, para lembrar o Joseph Conrad. Agora, acabo de ler no PÚBLICO que há 70 hectares de área desvastada e 630 de área ardida, segundo Ricardo Paiva, seu Director. O grave é a área desvastada, diz ele, e eu pareço estar de acordo. Já passei por centenas de hectares desvastados ou ardidos, de Idanha-a-Nova a Monchique e, às vezes, perante eucaliptais queimados quase que me aflora um sorriso aos lábios. É que a eucaliptização de Portugal é uma doença venérea que atinge as artérias aquíferas e só pára na vergonha da terra desértica. Os incêndios, como um antibiótico, não deixaram, apenas, rastos de morte e sofrimento, também atacaram a "celulosite" aguda que tem deixado Portugal a caminho do deserto. Vamos lá pensar e repensar a florestação, a ver no que "isto" dá. Com o rosto encostado aos carvalhos, aos castanheiros, aos sobreiros e azinheiras queimados, adormeço, entrelaçado no perfume brando deste canteiro de hortênsias.

16.9.03

LAGOA

Há dias para uma palavra. Há dias para um território. Há dias para tecidos dunares e coroas de névoa sobre as águas. A lagoa de Albufeira vista pela primeira vez, em fim de tarde, com o Sol vermelho a Ocidente, dá nisto: releituras de Carlos de Oliveira e Cardoso Pires, uma barreira dunar aberta, as palavras jorrando na lagoa.
E, ainda, a festa da amizade, escorrendo da casa do Pedro, tocando o Manolo, o Vasco, o Guilherme, o Ricardo, o Henrique, a Lurdes, a Rosa, a Maria, e todos os que se vão despedindo deste Verão que chega ao fim, pleno de dramas, de incêndios, de Terra mais pobre.

O Poema do Dia (4)

História de Inverno

A mulher de água
traz limos nas espáduas.
Tem olhos de lagoa
e o corpo como um rio.

Traz musgos sobre os seios
e a sua voz dá frio,
o seu olhar magoa.

Mas não lhe sei o nome.

Estende os cabelos de água
no inverno dos meus olhos,
dorme na minha sorte
por toda a noite insone.

Faz um rumor de chuva,
tem um sabor de morte.

Mas não lhe sei o nome.


Carlos de Oliveira (in "Colheita Perdida", Colecção Galo, Coimbra, 1948)

Lagoa de Albufeira

Regresso com a Lagoa de Albufeira enterrada nos olhos. Foi a primeira vez que me aproximei daquele espaço de água e areia, encostado ao mar. A palavra "lagoa" só por si enfeitiça tudo, olhos e ouvidos, fonética e narração, poesia e ficção.
A lagoa afunda-nos em "O Delfim", de José Cardoso Pires e a Gafeira será um outro nome de Albufeira. Repare-se:
"Todos os anos o mar rasga a membrana de areia que corta a linha das dunas, insinua-se nela, penetra por esse corredor e carrega sobre a lagoa, fecundando-a de vida nova. O ventre amplo, ventre macio forrado de lodo, revolve-se, transborda, mas, passado o ímpeto, povoa-se de pequeninas centelhas de cauda a dar a dar e a lagoa fica majestosa e tranquila como um odre luminoso de peixes abandonado no vale, entre pinhais."
Lê-se e os sons tocam esta superfície de 1,3 km2 que a publicidade chama para a pesca, a vaela e o "surf", em vez de chamar para o silêncio imperturbado que aproxima a madeira dos pinhais daquele campo de água e areia aberto aos animais.

Sorrimos com a Lagoa da Gafeira, com "O Delfim" e o José Cardoso Pires, e vamos direitinhos ao Carlos de Oliveira, ao "Finisterra, Paisagem e Povoamento" e o seu princípio :
"O jardim familiar (primeira fase do abandono ) : montões informes de silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selvagens." Ou "A Casa na Duna" e a referência à lagoa : "As águas saibrosas da lagoa, levava-as apressadamente a estiagem. Lobisomem entrava no charco, que lhe dava agora pelos joelhos, enchia de lodo uma velha panela. Trazia-as para fora e arrancava as enguias da crosta lamacenta. Estripava-as. Acendia a foguira no chão da cabana, deixava-a pegar bem. Passava as enguias sangrentas pelas chamas e comia à mão, chupando os dedos, donde escorria uma gordura meio crua " (XI). Mas Carlos de Oliveira parece também respirar aqui, como se a Gandra fosse a Gafeira e as duas fossem a Lagoa de Albufeira. Todas as águas se encontram.

12.9.03

Poema do Dia (3)

ROMPER DO DIA NO ALABAMA


Quando for compositor
vou compor uma música sobre
o romper do dia no Alabama
E vou lá pôr as canções mais belas
que se elevem do chão como a névoa dos pântanos
e que caiam do céu como o orvalho leve
E vou lá pôr árvores altas altas
e o perfume das agulhas de pinheiro
e longos pescoços vermelhos
e caras cor de papoila
e grandes braços castanhos
e olhos de malmequer
de gente negra e branca negra branca negra
e vou lá pôr mãos brancas
e mãos negras e mãos castanhas e amarelas
e mãos de terra de barro vermelho
que toquem em toda a gente com dedos amigos
e que se toquem entre si simples como o orvalho
nessa aurora de música quando eu
for compositor
e escrever sobre o romper do dia
no Alabama


( Langston Hughes, 1959, in "Também eu sou a América, poemas de escritores negros norte-americanos", tradução de Hélio Osvaldo Alves, Guimarães, Pedra Formosa, 1997)

Camões

Depois de ter lido o artigo "Os perigos do facilitismo", de Maria do Carmo Vieira, no suplemento JL/Educação, de 3 de Setembro passado, e de ter retido uma referência à vertente "autobiográfica " de Camões que "deveria ser trabalhada com os alunos",segundo uma anónima coordenadora do novo programa do 10.º ano, ficou-me uma raiva interior a lavrar os ossos e fui direitinho à releitura de um livro sublime de Vítor Manuel de AAguiar e Silva: "Camões : Labirintos e Fascínios" (Cotovia, 1994). Logo o primeiro dos ensaios deste livro, intitulado "...Um Camões bem diferente...", leva-nos à "tentação simplista" da "leitura biografista dos textos líricos de Camões e às célebres "conjecturas" do "engenhoso e sagaz" José H. Saraiva que no seu vendidíssimo " Vida Ignorada de Camões" vai ao ponto de inferir a biografia do poeta a partir de textos que Camões nunca escreveu ! O professor da Universidade do Minhorefere as leituras "erróneas, arbitrárias e carentes de fundamentação linguística e literária" que impregnam o livro de José Hermano Saraiva. E conclui Vítor M. de Aguiar e Silva que uma leitura biografista, "independentemente das objecções teóricas de princípio", "requereria, pelo menos, a prévis fixação segura do cânone da Lírica". Ora, conclui o professor Aguiar e Silva, "esta fixação não é possível no estádio dos conhecimentos actuais - e decerto nunca o será, salvo se ocorerem miríficas descobertas de cancioneiros autógrafos ou de cancioneiros apógrafos cuja fiabilidade não seja vulnerável."
Após estas entradas, vale a pena questionar a crítica literária e os leitores de "Vida Ignorada de Camões". Como é possível que se vendam mais de cem mil livros com a mentira impressa ? Como é possível que não haja a divulgação mínima, pelo menos entre os docentes e responsáveis pela formação de professores, da crítica fundamentada a uma "inventona" ? Inventar a vida de Camões a partir de textos ? A quem lembraria tal metodologia ? Inventar a vida de Camões a prtir de textos que Camões nunca escreveu e de outros de duvidosa autoria, como é isto possível ? Que leitores temos nós que compram gato por lebre, na ausência de informações fidedignas sobre a "cientificidade" da obra ? E não me venham dizer que os leitores de "Vida Ignorada de Camões" são os mesmos do "Big Brother" porque isso seria um elogio ao "lixento" programa. Os espectadores do "Big Brother" nem à Margarida Rebelo Pinto devem chegar ! Que fique a nota deste dia sombrio, carregado de nuvens mas sem chuva: vale a pena nadar neste " Camões: Labirintos e Fascínios" !

(Nota: como reparam, este texto é uma repetição do anterior que surgiu mal impresso. Reler, vale a pena.)

11.9.03

NY

Será que o mundo está mais seguro hoje do que há dois anos ?
Esta pergunta, lida há dias nem sei onde, levou-me mais longe e à responsabilidade dos EUA na destruição dos homens e da Terra:
Quantos milhões de pessoas morreram no Planeta por causa de intervenções americanas directas ou indirectas?
Perguntar assim é antiamericanismo ? Por ser verdade ?
De qualquer modo, estamos com os inocentes que morreram, com todos os inocentes que morrem. O terrorismo é uma vergonhosa cobardia, seja qual for a razão. Também há terrorismo americano e israelita, não esqueçamos.

CHILE

Trinta anos depois, ainda ressoa a voz e a coragem de Salvador Allende, lembrando que "muito mais cedo que tarde, se abrirão as grandes alamedaspor onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor". O documentário canadiano, ontem transmitido pela RTP1, foi um espanto ! O peso da memória dos sobreviventes de La Moneda, a verticalidade de um Presidente democraticamente eleito, a traição de militares a soldo dos EUA, a ditadura de 17 anos sobre um povo pleno de dignidade, tudo isto nos leva à frase de Luis Sepúlveda, um dos torturados por essa escumalha de sub-homens pinochetianos: "Nem perdoo nem esqueço !"
Trinta anos depois, vale a pena reflectir sobre um país distante, sabendo que a Liberdade está a passar por aqui.

10.9.03

Amanhã

Corre por todo o lado a mensagem para amanhã . deixa um livro em qualquer lado! Uns, dizem "PELA PAZ ! " , outros, "Atentado Poético !"; uns, pensam em Nova Iorque; outros, pensam no Chile, no golpe militar de Pinochet, na morte do Salvador Allende e de mais trinta mil chilenos. Estou com todos os mortos. Nem terrorismo nem fascismo. Vou pensar no livro que deixarei num banco de jardim, ao lado das hortênsias e do aloendro.

Ainda

Escrevo com a sensação de ter resolvido este problema viral que me tem envergonhado em todo o lado. Às vezes, damos por nós encostados a qualquer coisa, abúlicos e semiadormecidos, e a razão poderá estar numa virose que perverte os nossos textos e os deixa às moscas, no ar fétido das frases incompreensíveis. Será isto que envolveu o meu "Camões" ? A ver vamos.

8.9.03

Camões

Depois de ter lido o artigo "Os Perigos do Facilitismo", de Maria do Carmo Vieira, no suplemento JL/Educação, de 3 de Setembro passado, e de ter retido uma referência à vertente "autobiográfica" de Camões que "deveria ser trabalhada com os alunos", segundo uma anónima coordenadora do novo programa do 10.º ano, ficou-me uma raiva interior a lavrar os ossos e fui direitinho à releitura de um livro sublime de Vítor Manuel de Aguiar e Silva: "Camões: Labirintos e Fascínios" ( Cotovia, 1994 ). Logo o primeiro dos ensaios deste livro, intitulado "... Um Camões bem diferente...", leva-nos à "tentação simplista" da "leitura biografista dos textos líricos de Camões" e às célebres "conjecturas" do "engenhoso e sagaz" José H. Saraiva que no seu vendidíssimo "Vida Ignorada de Camões" vai ao ponto de inferir a biografia do Poeta a partir de textos que Camões nunca escreveu ! O professor da Universidade do Minho refere as leituras "erróneas, arbitrárias e carentes de fundamentação linguística e literária" que impregnam o livro de José Hermano Saraiva. E conclui Vítor M. de Aguiar e Silva que uma leitura biografista, "independentemente das objecções teóricas de princípio", "requereria, pelo menos, a prévia fixação segura do cânone da lírica". Ora, conclui o professor Aguiar e Silva, "esta fixação não é possível no estádio dos conhecimentos actuais - e decerto nunca o será, salvo se ocorrerem miríficas descobertas de cancioneiros autógrafos ou de cancioneiros apógrafos cuja fiabilidade não seja vulnerável".
Após estas entradas, vale a pena questionar a crítica literária e os leitores de "Vida Ignorada de Camões". Como é possível que se vendam mais de cem mil livros com a mentira impressa ? Como é possível que não haja a divulgação mínima, pelo menos entre os docentes e responsáveis pela formação de professores, da crítica fundamentada a uma "inventona" ? Inventar a vida de Camões a partir de textos ? A quem lembraria tal metodologia ? Inventar a vida de Camões a partir de textos que Camões nunca escreveu e de outros de duvidosa autoria, como é isto possível ? Que país é este que deixa asfixiar impunemente um poeta como Camões ? Que leitores temos nós que compram gato por lebre, na ausência de informações fidedignas sobre a "cientificidade" da obra ? E não me venham dizer que os leitores de " Vida Ignorada de Camões" são os mesmos do "Big Brother" porque isso seria um elogio ao "lixento" programa. Os espectadores do "Big Brother" nem `Margarida Rebelo Pinto devem chegar !
Que fique a nota deste dia sombrio, carregado de nuvens mas sem chuva: vale a pena nadar neste "Camões : Labirintos e Fascínios " !

6.9.03

O POEMA DO DIA ( 2 )

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

não posso adiar o coração

(António Ramos Rosa, in "Cadernos de Poesia" - II série)

V�RUS

De tanto se ter falado neles, o medo alastra. A doença pega-se, propaga-se dos amigos que perderam importantíssimos ficheiros até esta casa alta onde o céu, azulíssimo hoje, quase toca. Esta é uma justificação para o silêncio de quatro dias. A clandestinidade regressa ao quotidiano ou est ? amos, outra vez, perante um ataque marciano ? Ah, o medo... E eu que estive mais perto de Marte do que os habitantes das planícies, estremeço de pavor. Mas, afinal, o que é isto de um vírus informático, quando mais gente morre no Iraque, na Palestina ou noutros cantos já esquecidos do Planeta ? Valha-nos um pouquinho de calma para manter a lucidez cada vez mais necessária ao quotidiano ! Ou um poema, como este "clássico" do Ramos Rosa.

2.9.03

SETEMBRO

Há manhãs que nos caem em cima como portas que se fecham. Pesam. Trazem a memória dos dias leves no coração dos pássaros. São assim estas primeiras manhãs de Setembro: quase novas, brincando ao trabalho, chamando gente para a tarefa sangrenta do quotidiano. Neste meio-dia solar, com sol no jardim do Parque, vale a pena escrever com a palavra abétula, inventando nódulos negros para as dobras quase brancas da casca. Esguias, alinhadas, dão sombra ao ribeiro que corre para Sul, nesta Senhora da Peneda quase ao lado. As fragas multiplicam os caminhos. Também se pode morrer de tranquilidade: o rosto no musgo, o dia muito alto.

POEMA DO DIA (1)

Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura
de morte. O perfume a sangue à volta da camisa
fria, a boca cheia de ar, a memória
ecoando com as vozes
de agora. Onde está sentada brilha de tantas
moléculas
vivas, tanto hidrogénio, tanta sede escorregadia dos ombros
para baixo. Toca em
de onde rompe a rosa. Uma criança
luciferina. A mãe fechava,
abria em torno a torrente dos átomos
sobre a cara. Aquilo que a estrangula dos pulmões
à garganta
é a rosa infundida. Leva um braço às costas,
suando, raiando
pelo sono fora. Está queimada onde lhe toca. Falaria alto
se o peso a enterrasse à altura das vozes.
Via a matéria radiosa de que é feito o mundo.
A língua doce de leite,
a mão direita na massa agre, o sexo banhado
no manancial secreto.
O dom que transtorna a criança ardente é leve como
a respiração, leve como
a agonia.
Uma rosa no fundo da cabeça.

Herberto Helder (in "Última Ciência", Assírio & Alvim, 1988, pp. 7 e 8 )

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