30.10.03

Deco

Uma vergonha! Como é possível que um futebolista profissional, jogador da selecção nacional, tenha um comportamento de arruaceiro primário ? Por muito que lhe queiramos, não deveriam ser admissíveis tais atitudes num atleta que deveria ser exemplo de cumprimento das regras, disciplina e "fair-play". Não me venham dizer que é para prejudicar o FCP! O FCP será intocável? Em vez de um processo disciplinar, o Deco merecia um castigo de cinco jogos,pelo menos, não só como exemplo para os outros, mas também para ele próprio aprender que a má-educação tem limites. Os que o defendem deveriam pensar mais um bocadinho. Desculpá-lo? Reconhecerá ele a culpa, quando tantos comentadores o defendem e falam em "golpe-de-estado contra o FCP" ?
Claro que eu preferia ver o Obélix a atirar um menhir ao Astérix do que ver o Deco a atirar uma bota à queridinha relva!

29.10.03

Eucaliptos

São temíveis predadores: secam tudo à volta. As raízes invadem os lençóis freáticos, entram nas minas, pertuirbam o normal curso das águas, o crescimento das plantas. São inimigos da biodiversidade. Para além disso, perturbam a mancha florestal, sendo "responsáveis" pela velocidade de alguns incêndios.
Mas tudo se resolverá, agora, com a criação de uma Secretaria de Estado das Florestas. Quem foi nomeado para Secretário de Estado? Nada mais, nada menos que um eucaliptista ou eucaliptalista, de seu nome completo João Manuel Alves Soares ( não vão confundi-lo com o querido João Soares!). E vem dos lóbis, da Soporcel, da Portucel, dos que preparam a desertificação do país ou querem o Portugal do futuro a comer papel. Maravilha!
A eucaliptização dói como ver a própria casa incendiada. E esta nomeação equivale a pôr a raposa a guardar as galinhas ou um perdigueiro a guardar as perdizes!
Para dar sinal, aí está a entrada de leão: o Instituto de Conservação da Natureza a tornar-se volátil, as áreas protegidas a passarem para o Ministério da Agricultura e o mais que se verá. A pouco e pouco, os lóbis tomarão conta das poucas reservas ambientais e os patos-bravos da construção a babarem-se diante da presa! Mas, "não passarão!". A não ser que nos entorpeçam com licores de zimbro ou de medronho.

28.10.03

Metrossexual

As palavras nascem e morrem, é verdade. às vezes, aparecem e volatilizam-se, em pouco tempo. Ultimamente, temos assistido ao nascimentode palavras como empresarialização, deslocalização, ciberjornalismo, ciberdependência, blogue e blogar, blogosfera e blogodependência, seguindo a globalização ou a glocalização. E há muitas mais, nos domínios da economia, finanças ou informática. Mas esta de "metrossexual", querendo significar "basicamente um homem heterossexual que abraçou o seu lado feminino" é de mais. Significará que por um gajo andar às compras , cozinhar, lavar a louça, mudar a fralda ao bebé, dar o biberão ao puto, usar secador e "after-shave", perfume e descolorante já é um metrossexual? Ou será que o novo vocábulo só se aplica aos que se encostam no metro, dormitando, cambaleando nas curvas, agarrando os varões?

Chaves

À Feira dos Santos nunca fui mas já estive em Chaves, em 1997, no Dia de Portugal e das Comunidades, a receber uma comenda, em nome do poeta António Ramos Rosa. Esse 10 de Junho ficou célebre pelo discurso de António Alçada-Baptista que defendeu a mudança da letra do Hino Nacional (não sei se também da música). A polémica estalou e viu-se como somos conservadores e, mesmo, reaccionários. Não estivéssemos nós em Águas de Flávio e o discursador seria corrido à mocada pelos trogloditas de Rio Maior. Que marcham, ainda, ao troar dos canhões de São Julião da Barra.

Frases

1. "A América é um continente de crença, tão fundamentalista como qualquer outra região acusada de fundamentalismo."
Eduardo Lourenço ( cit. in PÚBLICO, 26.10.03)

2. "Considero-o ( José Cardoso Pires ) o maior escritor de língua portuguesa do século XX."
Maria Lúcia Lepecki ( DN, 26.10.03)

3. "Cerca de 33 mil tabacarias aderiram à greve de um dia, na sequência do último aumento (do preço do tabaco, em França)."
(Economia PÚBLICO, 27.10.03)

4. "Há várias armadilhas, como a vaidade, o caminho fácil e o dinheiro."
Dulce Pontes (Visão, 23.10.03)

27.10.03

BENFICA

O sábado passado ficou marcado pela inauguração do novo Estádio da Luz. Foi uma escapadela do pântano casapiano em que andamos a chafurdar. Um comprimido contra a depressão nacional. O Benfica tem retirado muitos portugueses dos consultórios psiquiátricos. Como outros clubes. Ainda bem. Mas gostosa, gostosona, foi aquela assobiadela ao Durão Barroso. Fosse ela consequente, meus queridões benfiquistas! Pena, pena, foi a chuva ininterrupta que foi caindo e varrendo o espírito crítico dos sessenta e cinco mil espectadores. Já ninguém se lembra que o Durão estava lá. Iremos prová-lo nas próximas eleições? Mantenham viva a memória!

NOTAS

1. CUBA. O "Finantial Times" fez bem em lembrar que os americanos estão proibidos de visitar Cuba mas podem visitar a Coreia do Norte. Um espanto de coerência ! Por que não são os americanos proibidos de visitar o Iraque?
2. RÚSSIA. Foi preso o russo mais rico, possuidor de uma fortuna calculada em oito mil milhões de dólares, qualquer coisa como o equivalente ao PIB da Islândia. Por que não lhe damos asilo, limpando a cara da Ferreira Leite e salvando Portugal do défice vírgula não sei quantos ?
3. AFEGANISTÃO. O "El Mundo" noticia o regresso dos talibãs e o seu controlo de algumas zonas do Afeganistão. O combate ao terrorismo fica nos poços do Iraque. Isto de atacar o Afeganistão foi só para disfarçar? Como é possível esquecer o terror e a completa destruição de valores e direitos da pessoa humana? Os talibãs estarão perdoados? Onde pára a coerência dos homens?
4. SUIÇA.Com 27% dos votos, a UDC (União Democrática do Centro) ganhou as eleições na Suíça. As frases chegam para nos amedrontar: "Não à Europa!", "Não à ONU!","Não aos estrangeiros!". O racismo e a xenofobia costumam entrar por baixo da porta, como quem não quer a coisa. O anti-europeísmo aparece ligado, por razões que a razão parece desconhecer. Para nos mantermos vigilantes. É que também os temos por cá.
5. ISRAEL. Pertenço ao grupo dos que acham que se deve dizer "tanques israelitas" ou "exército israelita", em vez de "tanques judeus" ou "exército judeu". As razões têm a ver com a defesa da laocidade, entre outras. Agora, fixo a frase do rabi Baruj Garzón, do Centro de Estudos Sefarditas, em entrevista ao PÚBLICO de ontem: "Quando falam de tanques judeus, não falam de tanques cristãos enviados pelos fundamentalistas americanos ao Afeganistão ou ao Iraque."

23.10.03

Ainda de Sophia

O POETA SÁBIO

É sábio hábil arguto informado
Porém quando ele escreve
as Ménades não dançam

Sophia

É o Prémio Rainha Sofia, é mais uma consagração para Sophia de Mello Breyner Andresen. Lê-la e relê-la é sempre o caminho solar a percorrer. Nos tempos que devagar correm, quando Camões é substituído pelo "Big-Brother" ou pelas telenovelas, vamos à leveza do texto:

CAMÕES E A TENÇA

Irás ao Paço. Irás pedir que a tença
seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
e sempre os inimigos sobejaram
a quem ousou seu ser inteiramente

E aqueles que invocaste não te viram
porque estavam curvados e dobrados
pela paciência cuja mão de cinza
tinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao Paço irás pacientemente
pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente

22.10.03

Blogar

Vou visitando alguns blogues e os seus discursos. Também fico atraído por algumas linguagens ou estilos. Há caminhos quase perfeitos, fotografias espantosas, reproduções de pinturas e suas leituras, poemas, textos, muitos textos. A qualidade abunda, apesar de ainda persistir um certo espírito "chatista": aquele disse isto, o outro disse aquilo, eu acho que, eu não concordo com o, vale a pena visitar o, disseram-me que eu, etc. Parece não ser este o futuro dos blogues. O cansaço chegará, mais cedo ou mais tarde ("mas que é que eu vou dizer mais daquele chato?"). Ou as rivalidades. Ou o ataque pelo ataque, sem espírito crítico. Ou a indiferença. Ninguém sabe.

"Novela Judiciária"

Em tempos de vergonha nacional, com "notícias" ou "reproduções" de conversas privadas, fui passear na praia, logo de manhãzinha. A maré vaza ajuda a limpar esta falta nacional de auto-estima. O dia ilumina-se. A casa portuguesa pode erguer-se longe da areia. Releio o discurso do Presidente da República. A maré sobe. O vento toca o rosto. A razão enche o ar. Respira-se melhor.

21.10.03

Brel e Piaf

Passaram dois aniversários de dois grandes da canção. Quatro letras no nome, duas vozes ao quadrado.
Edith Piaf, nascida a 19 de Dezembro de 1915 (no dia em que o nosso Vitorino Nemésio fazia 14 anos), morreu em 11 de Outubro de 1963. Há quarenta anos, portanto. No caminho ficou uma voz inesquecível de "pequeno pardal" e canções como "La Vie en Rose", "Sous le Ciel de Paris" ou "Je ne Regrette Rien". Para mim, Paris respira ainda a voz de Piaf, como um fado de Lisboa que mudou de tom na longa viagem. Ao recordar as ruelas e ruas da "Rive Gauche", os jardins ou as grandes avenidas de Paris, é Piaf que aparece colada aos "bistrots", aos "demi", ao "vin ordinaire". Na cidade das paixões, quando o tempo pára para a demora dos olhos, há um não sei quê de fulgor que entra naqueles lugares onde passaram Rimbaud, Baudelaire ou Van Gogh, Gauguin, Jarry ou Cocteau. E as multidões da República de 1789 e os Direitos do Homem e a Liberdade, Igualdade e Fraternidade e, depois, as multidões da Comuna de 1781 e o massacre no cemitério do Père Lachaise. E agora? Lá anda o Jean Ferrat, o Michel Maffesoli, a Catherine Ribeiro, o Zé Machado, o Heitor da Livraria Lusófona e tantos outros que dói não referir. Com Piaf, ao lado do Sena, Paris é o umbigo do mundo.
E Jacques Brel ? Mais francês que belga, atravessado pelo trilinguismo de um país recentíssimo de duzentos anos, voou para as ilhas oceânicas, onde a voz se pode encontrar mais perto do coração dos pássaros. De tantas canções que perduram na memória de água, fixo uma que me levou ao campo aberto das viagens: "Amsterdam". E essa Amesterdão de marinheiros que cantam, que dormem, que comem e bebem, leva-nos à fragilidade de todos os que habitam as casas dos andarilhos, os veleiros, os filhos dos ventos mais fortes. Depois, há "Ne me Quitte pas" e a dor mortal de todas as partidas e "Quand on n'a que l'Amour" ou, simplesmente, leve como uma folha de choupo que cai no Outono, "Les Bonbons". Foi há vinte e cinco anos que morreu? Como acreditar?

20.10.03

Oliviero Toscani

É o famoso fotógrafo publicitário da Benetton. Se não o conhecem a ele, conhecem as fotografias que percorreram mundo e, agora, uma frase da sua autoria, feita para pensar:
"Falemos claro: cannabis é uma droga, bem não faz. Mas em Itáliasão legais drogas piores: o álcool, o tabaco, a televisão."

É HOJE

Chegou o Dia das Forças as Armadas. Como sabem, é o dia da apresentação do Manifesto Nacional contra a Estupidez Militar. Como não há multas, duvido da minha presença ao lado dos mancebos do Paulo Portas. Gostaria mais de ser multado! De qualquer modo, lá irei!
A Bem da Nação !

16.10.03

Gomes Freire de Andrade

!8 de Outubro de 1817.
O General Gomes Freire de Andrade é enforcado,no Forte de S. Julião da Barra, em Oeiras, e, em seguida, queimado e as suas cinzas deitadas ao mar.É acusado de traição pelo General Beresford, comandante do exército inglês. É o espírito da Revolução Francesa e da independência nacional que é atacado. Mas o espírito liberal não morre e, três anos depois, chega o liberalismo e novos caminhosde de liberdade e de maior representação dos cidadãos.
No mesmo dia,18 de Outubro, no Campo de Santana (hoje Campo dos Mártires da Pátria) são enforcados , queimados e lançados ao mar, 7 outros portugueses, enquanto outros 4 são enforcados mas não queimados. O Campo fica marcado para sempre por estas 11 mortes. Com a do General Gomes Freire de Andrade, são 12 ! Os crimes prolongam-se pela noite e, por isso, ficou célebre a frase de D.Miguel Forjaz: "Felizmente há Luar!", dando origem à célebre peça de Luís de Sttau Monteiro, com o mesmo título.
Porque passam 186 anos, esta memória. Também estes "mártires da pátria" merecem uma flor vermelha.

Nobel da Paz

"Actualmente, muitas pessoas que lutam pela liberdade e democracia estão na prisão. Desejo a sua libertação o mais rapidamente possíve." São palavras de Shirin Ebadi, a jurista iraniana a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Paz. A frase poderia ter sido dita por qualquer um de nós. No Irão terá de ser gritada. Como em muitos outros países.

Alimentação

Eu como, tu comes, ele come. E "há 840 milhões de pessoas que não comem o necessário durante o dia", disse o Secretário-Geral da ONU.

Propinas

Parece que a Constituição garante a tendência para a gratuitidade do Ensino, em todos os seus graus. Parece que se brinca com a Constituição.
Era bom que os estudantes não pagassem, até aos 25 anos, por exemplo.
Era bom que os trabalhadores não pagassem IRS, até aos 25 anos, por exemplo.
Questão de igualdade perante a Lei.
O Zé tem 20 anos, estuda, o Estado paga.
A Maria tem 20 anos, trabalha, paga IRS ao Estado que paga ao Zé.

Nota: Se tudo fosse tão simples e se o dinheiro caísse da tal árvore!

15.10.03

Kalevala

Dos cantos 26 e 27, o resumo:

"Lemminkäinen vai à boda de Pohjola sem ser convidado e exige que lhe seja dado de comer e de beber. É-lhe oferecida uma caneca de cerveja cheia de víboras. Depois de uma luta com canções e com espadas, Lemminkäinen mata o dono da casa."

A epopeia nacional da Finlândia, publicada em 1835, ampliada em 1849, puxa-nos para a viagem. Lá iremos. Ao encontro das víboras. Serão sempre mais dóceis que o exército anglo-americano no Iraque.


Mau Tempo no Canal

Reler Nemésio. Viajar entre ilhas, saborear à distância um arquipélago saturado de beleza. Passear com Margarida. Trazê-la ao mundo dos realmente vivos. Falar-lhe do amor e da necessidade de esquecer.

14.10.03

O Ensino do Português

Basta este nojo (é a palavra) de Programa do 10.º Ano para dar azo a manuais repugnantes, ao nível do "Big-Brother" ou de algumas telenovelas. A Literatura Portuguesa fica nas crateras profundas dos séculos, onde dormem alguns fósseis de dinossauros, de berbigões e outros bivalves, de dodós aprisionados na ilha da Estupidez, comestíveis, mudos, incapazes de analisar a força predatória dos caçadores de analfabetos.
Já fui formador de professores de Português, durante alguns anos, e fico arrepiado com a proposta apresentada nesta coisa a que chamam "manual". Português B ? A Língua e a Literatura Portuguesas são sempre A ou AA. O nível de exigência varia mas, como uma casa, há sempre alicerces, portas e janelas, paredes, coberturas, isto é, uma estrutura primeira, um núcleo essencial.
Se me perguntassem a mim o que se passa no "Big-Brother" (ah, como gosto destas aspas!), ficaria no lugar do espanto. Até sinto problemas em escrever a composta palavra, tanto é o desejo de vomitar que sinto só de ouvir a sequência de fonemas. Quando zapo (saudações para o neologismo!), e me acontece "passar" por essa sarjeta, um só décimo de segundo me deixa encostado ao lado negro do excremento.
Por que será que os milhões de videntes do "Big-Brother" (ah, como gosto deste hífen!) não são condenados por crime de auto-estupidificação ? A pena? Presença obrigatória no Dia Nacional da Defesa, ao lado do Paulo Portas, qualquer que seja o concelho de origem. Quem pagaria? As autarquias, claro, que levantam penedos por todo o lado, mesmo em zonas protegidas. As ajudas de custo a pagar aos videntes poderiam servir para um só objectivo: provar que a estupidez também se paga.
(Nota: Os adjectivos deste texto aplicam-se, indiferentemente, aos autores do Programa e aos autores dos manuais.)

Dia Nacional

No Dia Nacional das Forças Armadas irei apresentar-me ao lado dos mancebos que o Paulo Portas encomendou às câmaras da Área Metropolitana de Lisboa. Não por causa dos mancebos, é claro. É que tenho a viagem paga, o almoço também e, principalmente, cobertura mediática. Irei aproveitar para apresentar um Manifesto Nacional contra a Estupidez Militar. No próximo dia 20 de Outubro,não esqueçam !

Simples

O mais simples da vida: acabar o dia
nesta cidade: cratera imensa onde caem
os viajantes das ilhas. O mar
traz o sargo negro que amadurece nas rochas,
encostado à ondulação.

Um exemplo: o sul, os dois bicos a sudoeste,
quase o fim. respira-se a flor que cai na falésia,
aquela que morre sem vento. E sabe-se quase tudo
sobre fósseis, sombras, águias-pesqueiras, aloés e
corvos-marinhos. Agora passa um barco
e tudo regressa à sombra desta palmeira-anã.
Se eu soubesse, só falaria de peixes e aves.

São quarenta e quatro anos, uma vida cheia de árvores e sabedoria. A carvalheira demora a sombra, neste Outono de quedas e terrenos calcinados. Os olhos ultrapassam os caminhos e as portas largas. Trazem o verde breve dos jardins encostado à sombra do rio onde aprendemos a nadar. Depois, vamos ao lugar do silêncio: entre ferros, iniciando viagens, chorando à procura do pai, rodeando a casa, adormecendo na sombra da figueira.
Nessa encosta para um rio que morre, a vida caminha para a leveza, procurando o sorriso, o lugar das rugas no rosto. E quem conhece a vida nunca poderá morrer de ignorância.

13.10.03

Ainda

O fim-de-semana volatilizou-se. Há sol por todo o lado. Digerem-se notícias de terra perturbada: atentados, massacres, acidentes, muros de vergonha. Esperam-se notícias do lado ameno dos homens.

9.10.03

Lugar Onde

A caminho de outras terras, com sol nas folhas, toco um poema de Ruy Belo e deixo-o cair nesta página. Os primeiros versos de "Portugal sacro-profano lugar onde" :

Neste país sem olhos e sem boca
hábito dos rios castanheiros costumados
país palavra húmida e translúcida
palavra tensa e densa com certa espessura
(pátria de palavra apenas tem a superfície)
os comboios são mansos têm dorsos alvos
engolem povoados limpamente
(...)

O Poema do Dia

Dizem que há poemas que nos salvam. Ou versos. O que parece é que a beleza passa pelas palavras. Ou a construção de mundos. Tão dentro. Tão de maravilha arquitectados. Tão próximos de um original universo.
A poesia de Herberto Helder inscreve-se nessa linha de radiações que nos enterra no fogo das esferas. Nos queima. Nos envolve. Como esta peça de "Última Ciência" :

Se perguntarem: das artes do mundo ?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos
recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as
noites
caem dentro dos dias - e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.



8.10.03

Mãe

Também eu gostaria de poder adormecer no fundo dos teus olhos
tocar a gelatina que os envolve e abrir uma janela para os caminhos
das memórias perdidas onde poderão ainda viver alguns lugares já
desaparecidos: o tanque da laje, a mina do souto, o silvado
dos ninhos de melro, a campa na rocha do menino de ouro, o pinhal da caruma abundante, o ameixoeiro bravo, o pilriteiro do cerrado.
Mas fico aqui, longe dos campos e dos pinhais, molhando os pés, tocando
algas, levitando na nuvem grande que a memória me trouxe.

Mãe

Também eu gostaria de poder adormecer no fundo dos teus olhos
tocar a gelatina que os envolve e abrir uma janela para os caminhos
das memórias perdidas onde poderão ainda viver alguns lugares já
desaparecidos: o tanque da laje, a mina do souto, o silvado
dos ninhos de melro, a campa na rocha do menino de ouro, o pinhal da caruma abundante, o ameixoeiro bravo, o pilriteiro do cerrado.
Mas fico aqui, longe dos campos e dos pinhais, molhando os pés, tocando
algas, levitando na nuvem grande que a memória me trouxe.

Outono

Manhã levíssima: o céu limpo, o mar plano, o coração mais perto do coração dos pássaros. Passeio ao lado das notícias vazias que preenchem alguns quotidianos. Por que falar em ministros quando as algas cobrem esta rocha e trazem o perfume longo do oceano? Desconheço o nome deste pássaro.

7.10.03

O Poema do Dia

CÃO

Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro, cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia-a-dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema !

Alexandre O'Neill (1924-1986)



6.10.03

República

A propósito do 5 de Outubro, comemoração da implantação da República em Portugal, vale a pena pensar no que significa ser republicano:
1. Defensor da igualdade perante a Lei (nenhum filho de rei ou rainha é mais que o filho de outro cidadão ) ;
2. Defensor de uma pátria ( ou "mátria", como gostava de dizer a Natália Correia) de cidadãos e não de súbditos.

Ser republicano não é uma questão de "fé", de crença num ritual real construído de diferenças, mas uma questão de defesa de princípios fundamentais de racionalidade: à igualdade perante a Lei chega-se pela razão. Iluminismo ? Racionalismo ? Apenas desejo de melhor Humanidade, mais justa, mais igual perante a Lei.
Custos ? Vale a pena pensar que a democracia e os actos eleitorais que ela envolve são uma valorização da consciência cívica. Não há custos que paguem a elevação da consciência dos cidadãos.
As monarquias, mesmo as constitucionais ou as mais "modernas", pertencem ao passado da Humanidade. Polémica a frase ? Ainda bem.

Dia do Animal - 4 de Outubro

Releio a "Declaração Universal dos Direitos do Animal", proclamada pela Unesco, em sessão realizada em Bruxelas em 27 de Janeiro de 1978. Do seus artigos, cito :
Art.º 1.º : Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência.
Art.º 2.º : Todo o animal tem direito a ser respeitado.
Art.º 3.º : Nenhum animal será submetido nem a maus tratoa nem a actos cruéis.
E a Declaração continua até ao artigo 14.º.

Quem dera que os presos de Guantánamo e outros presos, os palestinianos e outros povos, os esfomeados e os oprimidos, todos os homens, enfim, tivessem direitos iguais aos que a Declaração proclama para os animais ! Diz-se que a qualidade de uma sociedade se vê pelo modo como respeita os animais. E o respeito pelos Direitos da Humanidade, quando chegará ?

2.10.03

O Muro da Vergonha

Aí está a notícia, nua e crua: o governo israelita decidiu construir outro "muro de segurança", passe o eufemismo. Serão mais 45 km de cimento, a norte de Jerusalém. Emparedam o povo palestiniano, reduzindo-o ao "campo". O direito à mobilidade extingue-se. Os direitos humanos são para os outros. De vergonha, fechamos os olhos. A História parece nada ensinar. O terrorismo israelita aí está: contínuo, progressivo, à beira de um ataque de nervos.

Literatura "light"

Esperei até tarde, muito tarde, entristecido pela derrota do FCP. Finalmente, chegou o programa do Francisco José Viegas e a entrevista com a M. Rebelo Pinto, na RTP1. A chuva caía. Os relâmpagos incendiavam a noite. Vamos "ouver". Às vezes, um arrepio percorria-me a espinha: era o desleixo, a ignorância, o conservadorismo. Dos escritores portugueses que prefere, com o Mário Zambujal, o Alexandre O'Neill ( Ah, "Um Adeus Português" !) e o Jorge de Sena ( vá lá, grande JS ! ) ou o António Lobo Antunes( viva, meu "fado alexandrino" !), fica a pouquidão. Nem uma referência ao Herberto, à Sophia, ao A. Ramos Rosa, ao Eugénio, ao Saramago, à Agustina, ao e à. Depois há frases que é vergonha citar. Cito uma, apenas, com pudor : "Portugal perdeu a auto-estima quando perdeu as colónias !"
Há literatura "light" ? Não será melhor dizer que há literatura pimba ? E com tantos leitores como o baixíssimo "Big Brother"?

1.10.03

Sara, a Voz

Acordo com a memória da tua voz. "Perguntei ao vento" a razão de tal regresso e, levemente, como quem chega ao mar, respondeu-me o calendário: Dia Mundial da Música. A insustentável leveza do amor. O teu sopro caminhando de longe. E o teu regresso, hoje, ao lugar de aprender.

Ainda a Música

Um tremor. Um balbuciar. Um sussurro. Um cicio. Um tremular. Uma canção. Um poema. Uma sinfonia. Uma opereta. Um refrão. Um gesto. Um instrumento. Uma boca. Uma corrente. Uma onda. Um sol. Uma clave. Um pastor. Um meteorito. Um animal. A voz. A corda. A garganta. Tudo. Mesmo o silêncio.

Música

"Todas as artes aspiram à condição da música." - Schopenhauer. Do ruído fóssil às turbulências cósmicas, tudo é música. Mesmo o poema.

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