29.1.04

O Começo dos Dias












O COMEÇO DOS DIAS


O problema da vida é o início
das imagens depois de elas tomarem
corpo numa paisagem
logo as queremos retocar
como um retrato dos antigos
escondendo as sombras as cicatrizes
os defeitos e depois podermos
guardá-los na nossa própria memória
em ondas de azul
onde já não damos vez
ao que foi apagado como se lá
nunca mais houvesse mais nada.

É essa a perícia da vida
no que resta depois da partida
no combóio que algures está sempre
à espera na estação por detrás da colina
nos olhos da pessoa que nos observa
junto à vidraça por dentro da pequena loja
ou nas páginas escurecidas de um livro
que esquecemos um dia na estante
ou numa mesa suja de um café.

Não há forma de voltar atrás
depois de tudo estar encaminhado
em direcção à bilheteira
onde não queremos adquirir a passagem
e justificamos os belos dias de sol
os acordes de uma flauta a meio da tarde
um poema dedicado a Keats
um sorriso de uma mulher desconhecida
ou um muro de tijolos vermelhos por acabar
numa álea esverdeada do jardim
da casa pintada com a cal branca do tempo
para podermos regressar ao princípio
do mundo incompleto como a Vénus de Milo
e ainda atordoado que nos chama.

Depois ficamos com medo de não acordar.
Escutamos apenas o nosso nome ao longe.
Uma voz que se distancia em vaivém
pendularmente.
Há sempre dias que começam assim.

José António Gonçalves

(inédito, 29.1.04.Funchal)


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