25.1.04
Fiama Hasse Pais Brandão
Realizou-se ontem uma homenagem à poeta Fiama Hasse Pais Brandão, no Teatro Nacional D. Maria II. Maria Teresa Dias Furtado fez a apresentação da obra de Fiama, seguindo-se leituras de poemas e de dois excertos do romance Sob o Olhar de Medeia, pelos actores Maria Emília Correia, Teresa Lima e João Grosso. Também o poeta Casimiro de Brito leu um poema dedicado à poeta e integrado no seu livro inédito "O Livro das Quedas".
A poesia de Fiama vive, desde há muitos anos, de uma respiração próxima da terra. Chamemos-lhe uma poesia vegetal, tocada, sempre, por um sopro alado que toca o coração dos pássaros, o zumbido dos insectos ou a vida e morte das coisas mais pequenas. Há palavras mais fortes que podem levar ao "êxtase" e que moram perto do "caramanchão", como as "margaridas" ou as "buganvílias". A interioridade ou, se quisermos, a religiosidade (no seu sentido etimológico de re-ligar), aproxima o corpo do mundo do corpo do poeta. Há uma integração radical. O poeta é, assim, parte igual na respiração do Todo.
Para serena leitura, o poema de Casimiro de Brito, lido pelo autor na sessão de homenagem:
Um rosto, um olhar regaço
foi a primeira visão. Um olhar paciente
esperando que palavras caiam
maduras. Há pessoas assim, vêm da sombra
e trazem luz com elas, luz branca, pessoas que são
uma espécie silenciosa de mensageiros da paz.
Uma companheira poética.
Na primeira vez deu-me um livro
e desse livro colhi a primeira frase, o título,
Em cada pedra um voo imóvel ‹ talvez
tivesse começado nesse dia
o meu hábito de ler quando deixo
de ler, colher uma pérola, ser escolhido
por ela e não precisar de ler mais nada, apenas
pegar na pedrinha e caminhar com ela
nas ruas ou nas praias,
transportá-la num lugar muito reservado
onde a mente e o coração se acasalam.
Oito sílabas perfeitamente acentuadas
no som e no sentido. Um ritmo discreto, quase obscuro
e um sentido enigmático que integra, desde a primeira fala,
o último sumário lírico, a mancha solar
do pó, a harmonia dos ossos, a narração
da frágil matéria do mundo. Um fragmento
da vida toda e da vida antiga.
Isto é aquilo, metáforas, o todo em todas
as coisas, em vários anéis que ora se concentram,
ora se descentram ‹ é essa a essência
da poesia: o voo na pedra, a água que significa ave
quando a sílaba é um diamante,
uma mancha de voz
por onde circula o sangue que despe os objectos,
o pulso, a memória que existe nas palavras.
Ou são conchas? Isso ela diz, clarividente.
A homenagem à língua, à literatura
é antes de mais um ofício
entre o real e o divino, arte breve
que se faz com o corpo e tem
corpo, "o corpo carnal
dos meus poemas", a matéria vagarosa
das coisas todas que são dadas no poema
e nele exigem estar.
Quando, muitos estações depois e quase sábia,
ela, como Hípias, se retirou dos negócios públicos
também eu coincidente me retirei.
Do velho tempo. E penso nela e louvo
o canto vivo que levou consigo, pedras únicas
com voo dentro
onde a narração do universo se consome
e nos saúda ‹ deslumbrado com os espelhos aprendi
que nada equivale à vidraça do mundo.