29.1.04
A MÚSICA
A MÚSICA
Sempre ali esteve, a música,
o mar, e as ondas
de pássaros caindo como chuva ao fim
da tarde,
o piano tão líquido ou batendo
em acordes sobre o aço, uma
ilusão transformando
o som sem som, em tudo semelhante
ao silêncio,
a orquestra expandindo-se ou o refluxo
limpo dos pianíssimos,
ali estava
o silêncio, equivalente
ao som do mar e da cortina
de oliveiras defendidas do crepúsculo
por um muro de branco a escuro
passando, adolescente
música
como um corpo rolando nu na areia do
dia
quando na outra margem
a nota alucinada da fábrica o enchia,
o silvo que erigia em dor
o sexo,
as ondas desse mar orquestrado por
braços que nadavam.
GASTÃO CRUZ
(in "Rua de Portugal")
*
Gastão Cruz nasceu em Faro, em 1941. Poeta e crítico literário, formou-se em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa. Foi professor do ensino secundário e, entre 1980 e 1986, leitor de Português no King’s College, em Londres. Como poeta, o seu nome aparece inicialmente ligado à publicação colectiva Poesia 61. Como crítico literário, colaborou em vários jornais e revistas ao longo dos anos sessenta. Essa colaboração foi reunida em volume, com o título A Poesia Portuguesa Hoje (1973), livro que permanece hoje como uma referência para o estudo da poesia portuguesa da década de sessenta. Ligado também à actividade teatral foi um dos fundadores do Grupo de Teatro Hoje (1976-1977), para o qual encenou algumas peças. Algumas obras: (Poesia) - A Morte Percutiva (1961), As Aves (1969), Campânula (1978), As Leis do Caos (1990), As Pedras Negras (1995), Crateras (2000), Rua de Portugal (2002); (Ensaio): A Poesia Portuguesa Hoje (1973; 1979 – 2ª ed., revista).