18.11.03

"Lupus in Fabula"

Recordo o "lector in fabula" e Umberto Eco, menos predatório, mais em caminho para o interior dos "tecidos"onde o prazer das linhas aflora. Mas este "lupus in fabula", de São Moniz Gouveia (pseudónimo da machiquense Laura Moniz) arrasta-nos às feras predatórias do quotidiano, aos infestantes gestos da perturbação. O livro (n.º 10, da colecção 'Livros de Cordel', Funchal) desassossega-nos, no início, e leva-nos aos lugares pútridos do mundo, aos sítios onde os guerreiros matam e morrem, às lágrimas e aos lamentos. O poema final, já editado neste blogue ("sono de menino") aparece como a asa que fecha e protege ou o sopro que ainda pode tornar os corpos levitantes. Porque a alegria ainda é possível.


lupus in fabula

III

enganaram-se todos.

há lobos pastando sobre os prados
e comem as pastoras, as faces e os saiotes rodados.

há leões sentados nos jardins.
brincam sobre tronos, dançam sobre lápides,
usam como bastonete criancinhas.

há feras e feras, ceiam cordeiros, indefesas crias,
deglutem homilias, tenros ossos.
formigas passeiam no açúcar e no silêncio do grito decomposto,
saboreiam cadáveres com intenso comprazimento na putrefacção,
sem cheiros nem sabores preferidos.
o seu requintado objectivo é saciar a fome,
e choram, choram muito em forma de elegia,
porque o mundo não está cego,
e cedo acordará dentro do insuportável som dos tambores.

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