30.3.04
José Saramago
RETRATO DO POETA ENQUANTO JOVEM
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
POEMA À BOCA FECHADA
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
José Saramago,in "Os Poemas Possíveis"
*
José Saramago nasceu na Azinhaga, Golegã, em 1922. Antigo jornalista, publicou como romancista, entre outras obras, "Levantado do Chão", "Memorial do Convento", "O Ano da Morte de Ricardo Reis", "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", "Ensaio Sobre a Cegueira", tendo acabado de lançar o "Ensaio sobre a Lucidez" (Editorial Caminho). Outra das suas habituais edições são os "Cadernos de Lanzarote", onde tece uma amálgama de memórias, observações de quotidiano e notas sobre as suas experiências de andarilho de causas um pouco por todo o mundo. Casou com a jornalista militante Pilar del Rio tendo conquistado o Prémio Nobel da Literatura, em 1988, façanha de que foi o primeiro português a alcançar. Produziu e publicou, inclusivamente em livro ("Os Poemas Possíveis", "Provavelmente Alegria", "O Ano de 1993") alguma poesia, com realce para «Ouvindo Beethoven» ou «Fala do Velho do Restelo ao Astronauta» que receberam música e interpretação de Manuel Freire. Desde há vários anos que esolheu a ilha de Lanzarote, Canárias, Espanha, para viver, recusando manter residência em Portugal por motivos políticos, literários e pessoais.