26.3.04

DESVELAMENTOS











1.

A literatura vive de falhas sumptuosas, de algumas certezas
encostadas ao coração. Aonde chega a palavra,
edifica-se um campo de gestos novos, verosímeis.


2.

Um homem cruza-se na rua com outro homem.
Ambos caminham para um lugar. Ninguém sabe, ainda,
por que se desconhecem. Ambos choram ao mesmo tempo.


3.

Por amor de uma areia, um homem percorreu um deserto.
Encontrou-a no fim. Num ponto de presença absoluta,
onde se pode sentir a órbita de um planeta.


4.

De algumas rochas, fica o fascínio das altas temperaturas,
das recristalizações. Chegam à superfície, depois
de milhões de anos, para fazer de pedra a casa nova.


5.

Entre o poema e o poeta, há uma gramática sem semelhanças,
uma presença de ar obscuro. Torna-se possível a unidade do mundo,
a indistinção entre língua e fala. A voz estremece.














6.

O aloés ganhou outros ventos e sobrevive, na falésia,
entre cactos e palmeiras-anãs. Sem a perturbação das grandes noites
de inverno, não suportaria o fogo das areias.


7.

Deverá haver um lugar absoluto de ausência da Palavra:
um silêncio branco para onde caminham os poetas.
Aí se encontra o primeiro ar do primeiro sopro.


8.

Estar deitado à sombra, respirar o tronco e a terra,
é um conhecimento novo. Os caminhos da montanha
são ínvios por causa do amor, do saber.


9.

O escondido está totalmente ausente,
mesmo quando a palavra o traz para a frente do corpo
e o leva para os rios substanciais.


10.

Na margem do rio, o pescador vigia a sombra da cana,
o vento que a faz vibrar. As lampreias ficaram na foz,
cosidas à rede secreta que impede a procriação.


















11.

Os acantos mostram as folhas longas. Esperam a glória
dos capitéis coríntios. Entre a vida verde e a sombra eterna,
preferem o mármore, a leveza mais alta.


12.

Depois das chuvas, os campos reverdecem, protegem a terra
do excesso de luz. Os animais pisam os caules tenros, chamam
o desdobramento das imagens.


13.

À volta das cidades, dissipam-se os traços das ruas
e avenidas organizadas. Crescem imagens de barro e abandono.
A perturbação chega a todas as praças.


14.

As palavras são músicas, nascem dentro dos corpos.
À solta, falta-lhes o cheiro das coisas, aquela memória de dentro
que só conhece quem fala. quem escreve.


15.

Manifesta-se o mundo como exterioridade, como conjunto
que sobrevive autónomo. Pudesse algum animal caminhar no vazio,
absoluto e só, tornando leve a metafísica.


















16.

As vozes dos séculos trazem histórias verosímeis, radicais.
Tornam possível a ligação. A memória envolve os seres,
torna possível a vida, o convívio com os sentidos da morte.


17.

Tantos crimes, ainda, em nome da Liberdade. Tantas feridas
em nome do território. Com sentimentos de ocupação e posse,
o planeta não tem tempo para reciclar o ar.


18.

A volúpia tem voos inebriantes, a leveza do insecto que cai
mnas primeiras chuvas. Com ela, aprende-se a esperar,
a sacudir a terra dos sapatos, antes de entrar em casa.


19.

Depois das chuvas, repete-se a metáfora do tapete verde. As flores
regressam ao campo para mais um ciclo de cores e perfumes,
sempra à espera de olhos frescos, amorosas mãos.


20.

Nuvens sobre nuvens, cinza sobre o rio: como misturar águas
com outras águas, céu, terra, brilho do alto para os peixes?
Quando a luz toca o mundo, a serenidade chega, soma tudo.


















21.

Nas casas de madeira, junto ao mar, o vento tem outro modo
de se ouvir. Os pescadores inventaram linhas de cores,
rectângulos fortes para o atrair à praia, sem ele dar por isso.


22.

Os cereais estalam ao sol, na eira de milenar granito:
a sopmbra vem à luz, a terra chega ao fogo,
antes do alimento ou do retorno ao chão semeado.


23.

Os rios ainda correm por entre os verdes silêncios
que descem dos montes. No caminho, encontram pássaros,
cantos de crianças que recolhem lixos, tintas.


24.

Daqui a séculos, alguém escreverá que este
é um tempo de fronteiras e de guerras. E que não se salvou
por querer ganhar terra, em vez de viver o seu pão.


25.

Os objectos estão aí, como qualquer coisa inútil
ao serviço de outra coisa. Por não amarmos o mundo,
a nossa matéria, cortamos laços com tudo. Estamos sós.


















26.

O mundo deixa de ser imediato quando se entra na sombra
do conhecimento. Os sulcos na terra gravam caminhos
que as sementes nunca poderão escolher.


27.

Revela-se a casa escondida, o conhecimento adormecido na tribo:
a paisagem renova-se. O que é essencial funda mitos
em que pode participar o território da Grande Mãe.


28.

A entrada na casa de pedra, pelo semicírculo aberto na base:
a festa da água quente. Com menos calort, ainda, se pode adormecer,
quando é preciso iniciar a viagem.


29.

Pode mudar-se o nome
como quem caminha para outro lugar. Depois da diferença,
aparece o campo ignoto de todas as outras viagens.


30.

As mulheres recolhem conchas, na maré vaza.
Olham os barcos, à tarde. A ausência pode ser a mão na areia molhada,
os olhos para uma luz emergente.


















31.

Através da fresta, da fechadura, pode esperar-se a visão
do que não vemos. Alguém se consome com o desejo
de morar em outro lugar.


32.

A condição humana não tem ordem para o condicionamento.
As paredes marcam margens de alguns caminhos
mas nelas pode florescer a mais secreta violeta.


33.

Debaixo da árvore, com os pés bem fixos na terra,
esconde-se um novo animal. O movimento da Terra traz outra luz.
Assim, desaparece a primeira sombra.


34.

Os homens que falam sós na cidade:
a nostalgia dos grandes voos, esta febre de não poder arder
neste lugar de palavras, onde o próprio ar se repete.


35.

A poesia é um caminho subterrâneo, um lugar
de palavras húmidas. O sol, quando bate, transporta
a própria viagem de circundar a ilha dos afectos.


















36.

O triângulo cabe dentro do círculo mais pequeno,
como o quadrado, os poliedros. Ou as formas que quisermos
inventar para iludir o poder da Forma Suprema.


37.

As feridas mais profundas inscrevem-se no lado dramático
de conhecer o mundo. As lágrimas caem sós. O desespero provoca
o próprio ar que se respira.


38.

Há coisas demasiado simples para poder dizê-las,
como a diferença entre os verdes que cobrem as montanhas.
Não têm nome próprio. Nem sequer as suas sombras.


39.

Os jardins diante das portas não vivem só da própria beleza:
protegem, resguardam, mostram, escondem. Através deles,
poderemos chegar ao coração húmido da casa.


40.

Há uma história sem povo que fala de castelos, palácios,
alcáçovas, poder. Nenhuma razão para o esquecimento
de milhões de pessoas que os construíram.

















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