17.10.04

80 ANOS - PARABÉNS, ANTÓNIO!





POEMA DE UM FUNCIONÁRIO CANSADO

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.


António Ramos Rosa

(Faro,17.10.1924)




*
António Ramos Rosa nasceu em Faro, Algarve, em 17 de Outubro de 1924,faz hoje 80 anos. Nos anos 50, radica-se em Lisboa, vindo a ser director das revistas literárias Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia, tornando-se conhecido como ensaísta e crítico literário. A partir de 1958, com a publicação do livro "Grito Claro", torna-se conhecido como poeta. São fundamentais na sua obra poética os temas da terra, da água, do fogo e do ar. Em 1976, recebeu o prémio de tradução da Fondation de Hautvilliers e em 1988 foi-lhe atribuído o Prémio Fernando Pessoa. Autor prolífico e de elevada craveira, tem nos escaparates cerca de oitenta títulos (incluindo o ensaio).
Tive o prazer de com ele conviver durante vários anos. Fiz várias viagens, entre Sul e Norte,na sua companhia e da querida Agripina Costa Marques.E de ser seu editor, na "Pedra Formosa". Em 19 de Março de 1997, conduzi-o para o Lar onde hoje se encontra,bem perto do Restelo e de Belém.Depois,como quem adormece na margem dos caminhos, a vida cruzou-nos as voltas. Parabéns, António!


Comments:
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