16.5.04
POEMA DO DIA
POEMA DA VIAGEM AINDA POR FAZER
Devia ir por aí, na frente do sol,
levar-te uma mensagem, um rebuçado
de funcho, um livro com poemas de viajantes,
de marinheiros ou de eremitas urbanos,
contando o silêncio das pedras das ruas,
dos tempos esquecidos das cidades de bruma,
construídas bem juntinho à espuma cansada
do mar, ao calhau preto do vulcão adormecido.
Precisaria de coragem para ir, agarrado
à madeira rija dos barcos antigos, nas mãos
do vento agreste, orientado pelas estrelas
saltitantes dos navegadores de outrora,
obrigatoriamente proibido de olhar para trás,
para o lugar onde construiram as pontes,
abriram estradas, montaram as paredes
das casas rumorejantes, onde as noites
se acolhem, nos abraços dos amantes.
Mas não tenho. Não posso partir. Ainda.
A terra prende-me aos seus sulcos, ao cheiro
das ervas, ao canto dos ribeiros, às sombras
das encostas, ao apelo das montanhas,
aos desenhos coloridos da infância, aos luares
que me bateram à janela, ao roçar dos galhos
das anoneiras nas vidraças. E então sento-me
no muro com vista para as falésias distantes,
com as bandeiras da tarde crepuscular
a decorar o azul das escarpas e da babugem,
a me prender para sempre a pele ao esqueleto
da ilha, no cume exacto onde se encontram
as aves que me conhecem desde os primeiros
olhares que lhes dei, sobre a penedia, lendo
a poesia dos canaviais, com a sua música
verdejante. E adormeço, de novo, calmamente,
por aqui, onde o mundo olvidou a necessidade
prosaica de um dia me procurar, em busca de novas.
José António Gonçalves (inédito. 16.5.04)