29.2.04

Vitorino Nemésio



SEMÂNTICA ELECTRÓNICA


Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores,
E sou ordenado,
Enfim --- o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
--- Mas --- diz-me a ordenança ---
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens...
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!

*
Não cantarei a virgem que o cavalo
Com um xairel de sangue arrebatou,
Quebrada pelo bruto, - nem levá-Io
Ao potro vingador de um verso vou.

Não cantarei tal noite aziaga. Falo
Apenas do que tenho, do que sou
Com ela, como o vinho no gargalo
Do frasco em que me bebe e me esgotou.

Nem cantarei a vítima do resto,
Violada na inocência que perdeu
Nas emboscadas de um punício lodo:

Que só meu próprio amor acendo. E atesto
A chama da Victória que me deu
Na margarida branca o mundo todo.


(in Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga, 2003)


*
Vitorino Nemésio (ilha Terceira, Açores, 1901; Lisboa, 1978) fez os seus estudos na Universidade de Coimbra e foi professor da Faculdade de Letras em Lisboa, acabando ainda por ser docente no Brasil, França, Bélgica, Espanha e Holanda. Poeta, conferencista e escritor, colaborou com a televisão estatal, a RTP, apresentando um programa cultural durante alguns anos, com o qual conquistou o povo português com um aura de simpatia, respeito e curiosidade. Foi director, após o 25 de Abril de 1974 de O Dia (em 1975). A sua eloquência oral, reveladora de invulgar cultura, projectou-o a um plano raro nos meios académicos e até nos populares, dentro e fora de Portugal. Bibliografia: (Poesia) La Voyelle Promise (1935), O Bicho Harmonioso (1938), Festa Redonda (1950), Nem Toda a Noite a Vida (1952), O Pão e a Culpa (1955), O Verbo e a Morte (1959), O Cavalo Encantado (1963), Canto da Véspera (1966), Limite de Idade (1972), Sapateia Açoriana (1976); (Ficção) Paço do Milhafre (1924), Varanda de Pilatos (1926), A Casa Fechada (1937), Mau Tempo no Canal (1944), O Mistério do Paço do Milhafre (1949), Quatro Prisões Debaixo de Armas (1971); (Ensaios e crónicas) A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio (1934), Relações Francesas do Romantismo Português (1936), Isabel de Aragão (1936), O Campo de S. Paulo, a Companhia de Jesus e o Plano Português do Brasil (1954), Vida e Obra do Infante D. Henrique (1959), Corsário das Ilhas (1956), O Retrato do Semeador (1958), Jornal do Observador (1974), Quase que os vi viver (1985).

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