31.8.05

"KOBA"




Com Agosto a tecer as últimas horas, percorro as últimas páginas do livro de Anna Larina Bakhunina,viúva de N.I. Bakhunine, um dos dirigentes soviéticos fuzilados no grande terror estalinista dos anos 36-38.
Tudo aparece como impossível, nos gulags desumanizados, no brinca-brincando com o tiro na nuca, no delírio instalado, nas pessoas reduzidas a dejectos humanos. Mas o testemunho aí está: corroendo a nossa consciência instalada, como quem arranja desculpas para os criminosos mais sanguinários que povoam o planeta.
Estaline, "Koba", "o patrão", arrastará sempre consigo o lado putrefacto da Humanidade. Criminoso sem desculpas,salvo a sua loucura, acompanha Hitler e mil outros na enciclopédia maldita dos assassinos e inimigos da Liberdade.
Nem merece uma fotografia.
Mas vale a pena ler este "BUKHARINE, MINHA PAIXÃO", de Anna Larina Bukharina (Edições Terramar, 2005) e, se possível, acompanhá-lo com "KOBA, O TERRÍVEL", de Martin Amis (Ed. Teorema, 2003), já que se considera lido "O ARQUIPÉLAGO DE GULAG", de Alexandre Soljenitsine (1975).
Nenhuma lágrima calará a voz dos milhões de assassinados pelo terror do aparelho estalinista.
Já é tempo de fazer o julgamento póstumo de José Estaline, o Terrível.Para não esquecer.




27.8.05




EM SILVES, ONDE AS FONTES

Agora, uma flor branca sai da fenda
mais alta da muralha e muda a cor
da pedra à volta, dá-lhe novo brilho
como se o tempo fosse um arco vivo.

Húmido canto chega deste rio
que foi lugar de festa e de viagem:
ainda se ouve um canto nesta margem,
um alaúde, um baile, a dança leve.

Chegaram os cruzados e o silêncio
tocou o fundo de água da cisterna.

Dispersaram-se os sons do alaúde
nos jardins do alcácer, onde as fontes
acompanhavam vozes e corriam
para um tempo de terra e poesia.

E alguém chorou a sorte destes campos
que, um pouco mais a Sul, vêem o mar.
Alguém deixou a marca para sempre
de um perfume mais branco que as partidas.

Guardam flores de sangue alguns caminhos.
Os guerreiros passeiam sob as naves

Chega do mar um vento luminoso
que toca a pedra ruiva do castelo:
traz o gosto da amêndoa, da laranja,
das rosas bravas, soltas sobre a terra.

O Garb Al-Andaluz mostra as ruínas:
nos poços, nas cisternas de arenito
corre, ainda, o perfume dos vestidos,
esvoaçando leves sobre os corpos.

Quem dera ouvir, agora, Ibn-Amar
a ciciar os versos da paixão!
Quem dera, em Silves, ver Al-Muthamid
a oferecer-lhe a rosa do perdão!

Quando chega o perfume incandescente
dos laranjais em flor, canela e tâmara,
ouvem-se versos soltos, prolongados
pelas margens do Arade, o mesmo rio.

De Abu-Afan não falam as memórias:
já os candis se apagam sobre o mar.


Firmino Mendes, in "A Terra e os Dias",
Pedra Formosa, 2000

26.8.05




Às vezes, a memória é cruel.

Mas absolutamente necessária.

Absolutamente.

25.8.05

Regresso do Sul com mais duas lágrimas para poder aguentar o próximo Inverno.
Dói a urbanização predadora, a visão de dunas ocupadas, as casas dos índios-da-meia-praia como uma ilha podre e desorganizada, em contínua expansão, como uma sucateira humana a céu aberto. E sabe-se hoje como o romantismo de alguns arquitectos no pós-abril pôde ajudar a destruir a nossa chamada orla costeira. E sabe-se hoje como essa arquitecturite aguda semeou a destruição das praias e conseguiu levantar prédios e mesmo escolas ("dádivas" dos 'bons' empreiteiros, diz-me um amigo)em cima dos areais!
Ainda em Lagos, comovo-me com a praia de Porto de Mós, minha conhecida de vinte anos, ao saber que irão construir um motel e mais de quarenta apartamentos, em cima da falésia! Ao presidente da Câmara pude transmitir a minha revolta, numa conversa amena na Feira do Livro, na Praça do Infante.
Mais a Oeste, na costa de Aljezur, passeio-me na praia de Monte Clérigo e fico parado na beleza das rochas, dos charcos, da vida pulsante. E olho as casas clandestinas, todas costruídas no pós-abril.
E há mais, por todo o lado.
Aguarda-se um país.

19.8.05



Marikel Lahana
PORQUE SOMOS PÓ DAS ESTRELAS, O FILME "VOIE LACTÉE" ("VIA LÁCTEA"), DE MARIKEL LAHANA, CLICANDO AAAQQQUUUIII.

18.8.05

LEITURA




Chama-se José António Saraiva e é mais conhecido por ser director do jornal Expresso e sobrinho do homem das duas mãos, José Hermano Saraiva. É que o pai não foi ficcionista nem inventava estórias. Saiu o romance Jardim Colonial, houve entrevista no próprio jornal e a frase de que pensava ganhar o Nobel da Literatura. Porque escreve bem, mais que bem, como neste naco impagável e original de prosa realista:

«Nélson passou um braço por cima dos ombros de Filomena, aconchegou-a, e com a outra mão começou a fazer-lhe festas nas pernas, primeiro em baixo e depois cada vez mais acima até lhe tocar com as pontas dos dedos nas virilhas. Ela não se mexia: parecia paralisada. Ele meteu-lhe os dedos por baixo das cuecas, sentiu uma camada de pêlo duro e encaracolado, ficou com as borbulhas do sangue a escaldar, quis ir mais fundo.» (pág. 137)

Como escreve o P.M., "também eu queria muita coisa".
Ou como dizia o meu avô:"Ai, Filomena, Filomena!"

16.8.05

INCÊNDIOS




Dói gente e terra e animais,
Ninhos e luras, tocas e florestas
Dentro do grande desastre

Mil lágrimas solidárias
Para arrefecer tantas insónias
E mágoas

Dói gente e terra e animais

13.8.05




É sempre tempo para pensar, deixar uma mensagem, meditar, parar, deixar a agitação do Verão.
DEIXE UMA MENSAGEM. ACENDA UMA VELA,CLICANDO AAAQQQUUUIII!

9.8.05

DESVELAMENTOS




1.

A literatura vive de falhas sumptuosas, de algumas certezas
encostadas ao coração. Aonde chega a palavra,
edifica-se um campo de gestos novos, verosímeis.

2.

Um homem cruza-se na rua com outro homem.
Ambos caminham para um lugar. Ninguém sabe, ainda,
por que se desconhecem. Ambos choram ao mesmo tempo.

3.

Por amor de uma areia, um homem percorreu um deserto.
Encontrou-a no fim. Num ponto de presença absoluta,
onde se pode sentir a órbita de um planeta.

4.

De algumas rochas, fica o fascínio das altas temperaturas,
das recristalizações. Chegam à superfície, depois
de milhões de anos, para fazer de pedra a casa nova.

5.

Entre o poema e o poeta, há uma gramática sem semelhanças,
uma presença de ar obscuro. Torna-se possível a unidade do mundo,
a indistinção entre língua e fala. A voz estremece.

Firmino Mendes (in "Desvelamentos")

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